sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Como se define...


Eu já contei prá vocês que eu trabalhei durante muitos anos na Previdência Social, como agente administrativo. É tipo uma auxiliar de escritório...


Eu trabalhava junto das Assistentes Sociais e, nessa função, eu lidava com segurados de todo tipo, requerendo os mais diversos benefícios. Uma grande maioria deles faziam parte de projetos, nos quais as Assistentes Sociais os auxiliavam - na condição de trabalhadores portadores de determinadas doenças mais comuns - a não abandonarem o tratamento e a se reintegrarem no mercado de trabalho. 

Doentes de hipertensão arterial, de artrose, tuberculose, de alguns problemas psiquiátricos, de HIV... Trabalhando com eles, muitas vezes, eu tinha que levar laudos para os médicos peritos, ir tirar dúvidas junto a eles prá melhor orientar os segurados.

Naquele tempo havia um médico - não me lembro se o nome dele era Saulo ou Paulo (afinal os dois nomes são quase a mesma coisa, pois Paulo de Tarso nasceu com um desses nomes e optou por ter outro...) - com o qual eu fazia o possível e o impossível prá não conviver: um homem sem educação, gordo, careca, suarento, grosseiro, agressivo... Tudo nele era desagradável, até o tom de sua voz. Os pelos grisalhos que saltavam prá fora da abertura da camisa - brrr, davam nojo. 

Na vida, muito da beleza e da feiúra não são resultado só da aparência da pessoa: como ela é por dentro tem muita influência. Eita homem feio. F-E-I-O.

Tratava mal a gente, tratava mal os segurados...

"- Moça, o médico da sala 11 tem algum problema? Eu vim acompanhar minha mãe numa perícia, ele tratou ela igual lixo!"

E eu pensava com os meus botões por que será que uma pessoa que odeia tanto a raça humana resolveu ser médico...

Até que um dia - eu estava grávida do meu moleque - o tal doutor tratou mal a pessoa errada. 

O segurado tava fazendo tratamento psiquiátrico, não gostou de algo que o doutor disse, sacou uma faca e furou ele de tudo quanto foi jeito - e olha que ele tinha superfície de sobra prá ser furado. Rosto, peito, braço, costas...

Mediante os gritos do coitado entrou na sala o segurança - um rapaz muito bom e simples, chamado Vanderley - que acabou levando uma facada no olho. Não morreu por milagre, mas ficou cego...

Foi uma gritaria medonha, polícia, ambulância... Tudo que é funcionário foi ver, as Assistentes Sociais foram, só eu fiquei no meu canto - imagina se eu ia dar pro meu bebê essa sensação do mal, ele todo quietinho na minha barriga...

Passados uns meses, antes de eu tirar minha licença maternidade, eis que volta o médico prá requerer benefício por incapacidade - pois além de ser funcionário público ele também trabalhava em hospital particular, então tinha que requerer o auxílio-doença igual a qualquer segurado.

Estava paraplégico - pois tinha levado uma facada na coluna - bem mais magro, olhar perdido... Um fio de saliva lhe escorria discretamente pelo canto da boca.

Empurrando a cadeira estava um outro médico, de aparência mais jovem - jovem, mas com os cabelos grisalhos, prateados e brilhantes, uma cabeleira de fazer inveja de tão linda. O rosto extremamente bonito, com olhos verdes que pareciam feitos de vidro. Dentes perfeitos. Mãos bem cuidadas, unhas esmaltadas com base. 

Me lembro bem que sua chegada causou um alvoroço na mulherada, tanto nas funcionárias quanto nas seguradas - o tipo de homem que, quando a gente olha, esquece até do que tá falando... Eu pensei que ele era a cara do ator francês Alain Delon, jovem mas de cabelos grisalhos - alguém que é da minha geração se lembra dele? Prá quem não sabe de quem eu tô falando, espia só a figura:




Pois é... às vezes a natureza repete a fórmula... 

Esse homem absurdamente bonito com delicadeza pegou um lenço no bolso e, com todo carinho, enxugou a baba escorrendo da boca do outro...

As assistentes Sociais quase saíram no tapa pelo privilégio de atendê-lo - e soubemos então que eles eram um casal, já há mais de quinze anos. Esse médico de aparência agradável, de fala educada e mansa, lindo que só a preula, era quem cuidava com desvelo daquele que nós considerávamos um monstro: dava-lhe banho, trocava suas fraldas, o alimentava... Estava de licença prêmio (pois também era servidor público...)  e pretendia estendê-la o quanto desse, a fim de cuidar do homem que era o amor da sua vida!

Coisa estranha este mundo...

Como é que uma pessoa tão desagradável conseguia ser o objeto de tanto amor e dedicação? 

Algum tempo antes disso acontecer, quando eu ainda trabalhava de voluntária dando banho em senhoras acamadas no Abrigo Bezerra de Menezes, conheci uma mulher chamada Maria José, de apenas 45 anos, ali abandonada pelo marido e pelos três filhos (incluindo duas moças) porque teve um derrame e estava com metade do corpo paralisado. Saibam que ela ainda conseguia andar - mesmo arrastando a perna esquerda - era capaz de usar o banheiro sozinha, se alimentar (eu só a ajudava no banho porque ela tinha medo de escorregar no banheiro...), mas - mesmo assim - eles a abandonaram ali... 

Ela sempre dizia: "Logo que eu estiver melhor, eles me deixam voltar prá casa...". Pobrezinha...

Quantas de nós, ao irmos envelhecendo, engordando, perdendo o frescor da juventude, somos trocadas por um "modelo novo" - e ali estava aquele homem grotesco sendo alvo de tanto amor...

Se ser homossexual fosse pura sem-vergonhice (como alegam algumas pessoas...) o médico bonito podia muito bem ser sem vergonha com um homem mais novo, mais bonito, em pleno vigor e saúde... 

E não era por interesse financeiro: o médico bonito era podre de rico...

É...

Só cabe a Deus entender o que acontece neste mundo...

Nosso papel é amar a Ele acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos...

Se - por acaso... - algum tipo de amor for errado mesmo, for realmente pecado, no final das contas, se for amor mesmo... Paulo de Tarso não disse que "O amor apaga uma multidão de pecados"? Então... 

Julgar só Deus pode - e uma coisa é certa: estamos apenas começando a soletrar essa palavra linda - amor... 

Não podemos, do fundo do coração e com toda convicção, pensar que sabemos tudo e, nas nossas pálidas certezas, sairmos atirando pedras...

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6 comentários:

  1. Amiga que triste é a vida né e que
    tragédia para esse homem, mas sabemos
    que todos tem que´passar por um aprendizado
    e ele tem o dele, parabéns a vc que viu tudo e fez esse
    post gratificante, bom para refexão

    Bjuss de bom final de semana

    └──●► *Rita!!

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  2. Rosa...é isso mesmo: "O amor apaga uma multidão de pecados"!!!
    E hoje em especial...toda a SORTE do mundo!!!

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  3. Que lição pra todos nós esse teu texto, Rosa.
    Você tem toda razão quando diz: "Julgar só Deus pode - e uma coisa é certa: estamos apenas começando a soletrar essa palavra linda - amor..."
    Beijão no coração.

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  4. Rosa

    Que história sensível, exemplo de humildade, de amor, de força de alma. Triste e linda ao mesmo tempo. Deu-me vontade de chorar por esse exemplo de puro amor. Eu, no seu lugar, também teria repulsa por esse senhor médico tão bruto. Fica difícil não julgar embora saibamos que só Deus sabe julgar o íntimo de cada um.

    Quanto ao tema deste post, a escolha sexual pertence a cada um o direito de querer amar, de ser feliz e de fazer outra pessoa feliz, não importa qual o gênero.

    Homens e mulheres fazem escolhas e o que importa se um homem ou mulher (que pode até ser um familiar nosso) amar outra pessoa do mesmo sexo? se o mais importante da vida é o amor, não é mesmo? Na Bíblia, se não me engano acho que está em Corintios em que Saulo fala sobre a importância do amor e que faz parte de uma letra musical de Renato Russo.

    Voltando a história dos médicos, escolha sexual não define o bom ou mau caráter de alguém. Os pensamentos, o carinho, o respeito com que se trata a si e a outras pessoas é o que define o caráter.
    O amor, para mim, é um como um prêmio de quem sabe conquistar e mantê-lo.

    Acho estranho, após o que você descreveu, o senhor médico conquistar e manter tamanho amor do jovem mas não nos cabe julgar. Talvez ele (o senhor) precise receber muito para poder doar nesta ou em outra reencarnação. Só Deus sabe! por isso só Ele pode julgar.

    Enfim, tudo é lição que se tira, tanto para ele quanto para nós que soubemos dessa história e ficamos pensando, meditando.

    Em matéria de amor não há o que possa impedí-lo de existir.

    Bjs e tenha lindo fds.

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  5. Lembro que minha mãe falava quando via um homem bonito..que era um pão! Assim foi Alain Delon!
    Essa frase de Paulo de Tarso é tão linda e revela o amor de Deus por nós! Quanto amor tem Deus..
    Quanto amor tem Deus que deu aquele médico horroroso uma prova, pra que ele parasse de tratar mal aos outros e prejudicasse mais a si mesmo, quanto amor tem Deus...

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  6. A sua história é comovente e ilustra bem o quão complicado é definir o amor!
    Bom fim de semana.querida.
    Beijinhos

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