Mais um sábado de sol... O melhor dia da semana, indiscutivelmente: ter o direito de acordar mais tarde, mas descer da cama com cuidado, o corpo duro, pensando em todas as oportunidades que estão chamando lá fora, silenciosas como o próprio sol...
Tomar banho, vestir um vestido fresco - em pleno inverno com cara de verão, graças a Deus!
Estacionar o carro, ir à pé - de mãos dadas - em direção à feira livre da Enéas de Barros - adoro feira livre. O barulho, as barracas, as pessoas...
Caminhando por detrás das primeiras barracas - irregulares, montadas no começo da rua, sem licenciamento da Prefeitura (obviamente) - vejo vendedores de jogos e CD's de música e filme piratas, uma barraca onde a vendedora, sentada em um banquinho improvisado de caixote de fruta, descasca alho e cebola prá vender...
Atrás das barracas, sentada num degrau do muro do colégio, uma senhora de idade, próxima aos setenta, oferece a todos que passam seus ímãs de geladeira. Invisível. Apressadas, as pessoas passam arrastando seus carrinhos, comendo pastel, indiferentes aos apelos da velhinha. Paro prá comprar, o coração doendo no peito... "É 2 real os feitos de meia, 1 real os que são de pano. É que os de meia são mais caprichados, dão mais trabalho prá fazer, né?!". Tão lindos... Tão delicados... Compro três e a senhora me sorri, quase nenhum dentinho na boca...
Passo por outras barracas, gente conversando, gente rindo, comprando. Chego na barraca de pastel da Maria - o melhor pastel de escarola que já comi na vida (melhor até que o meu - raios!!!). Já 30 anos e ela continua imbatível - mas o meu de palmito é melhor que o dela (se me serve de consolo...).
Ali sentada na cadeira de plástico espero paciente meu pastel ser frito e deixo meus olhos se alimentarem da vida que borbulha à minha volta...
À minha esquerda o homem que vende milho cozido, pamonha e curau - podia comer tudo que ele vende, sem cansar nunca. Adoro... Hoje ele trouxe a filha adolescente, que - com certeza - preferia ter dormido até tarde, ir passear no shopping, trocar mensagens nas redes sociais com as amigas - mas ali está, aprendendo com o pai que a vida é trabalho e que trabalho é vida.
À minha frente a mesma barraca de sempre de utilidades do lar e seus dois donos - um casal de velhos que já viu muitos e muitos sábados na vida, olhando desconsolados a maré de gente que atravessa a frente de sua barraca e não leva nada. É duro prá eles viverem nos dias de hoje, tempo de hipermercados e lojas de shopping - são poucos os que param prá comprar o que eles tem a oferecer: tábuas de madeira de cortar tempero, martelo de carne, rodas prá carrinho de feira, borracha prá panela de pressão, panos alvejados, ralinho japonês, desentupidor de pia... Uma mulher para e pergunta o preço de uma frigideira, a senhora se levanta animada, responde e volta a se sentar, pois a freguesa só queria saber o preço...
Ao lado dessa barraca um homem vende quitutes feitos pela sua senhora: cuscuz de sardinha, empadinhas de frango, bolo, cocada. Trocando um pé pelo outro - talvez sofra de varizes...
Passa o velhinho vendendo saco de limão, o outro a vender panos de prato com acabamento de crochê - semana passada já comprei...
Queimo a boca com o vapor quente, mordendo apressada o pastel da Maria. Peço um caldo de cana com abacaxi prá sarar a boca e me sinto bem-aventurada, sentada na sombra comendo o que gosto...
Chega um adolescente com Síndrome de Down, desenvolto como só quem é muito amado e criado pro mundo pode ser. Seguindo sua sombra chega o pai, com idade prá ser avô do garoto, mas cheio de vida, falando alto: "Bom dia! Bom dia a todos! Hoje eu cheguei atrasado, por isso o menino tá com pressa! Falou no pastel o caminho todo!!!" Se apressa a tirar o filho de perto da fritadeira, preocupado com a falta de atenção do garoto... "Hoje eu trouxe a dona da pensão onde eu moro...", se referindo à esposa, também uma mulher de idade avançada - o filho foi "a raspa do tacho dela"... Animados, pedem pro menino um pastel de carne e ovo - e ele também queima a boca, como eu, ao dar a primeira mordida...
Hora de ir embora.
"Tô precisando de uma nova tábua de tempero, a minha tá cansada de velha..."; "Me compra um curau de milho de sobremesa?"; "Quero levar um cuscuz de sardinha, tá com uma cara boooa...".
"Mulher, acho que você deve ter uma moela trituradora dentro da barriga! Acabou de comer dois pastéis! De noite vou comprar pizza...". Mas - graças a Deus - ele não consegue me negar meus pequenos (e os grandes) gostos... Muito embora eu nem esteja assim "precisando" de uma tábua nova, nem aprecie tanto assim cuscuz de sardinha (prefiro atum, que não tem espinha...) tudo o que peço, recebo. Mata minha fome de fazer meu tantinho, remendar o pedacinho que me aparece do tecido do mundo, ajudar os irmãos a levar o dinheiro de pagar a conta de luz prá casa...
No caminho, peço ao "Marildo" prá dar o pastel de queijo de brinde prá senhora dos ímãs de geladeira - ela sorri novamente, quase sem nenhum dentinho...
Levamos os pastéis das nossas "crianças" prá casa e vamos ao mercado - lotado! Os corredores cheios de gente - uma velha senhora com a empregada, o garoto quase adolescente com o pai, o casal de namorados que se beijam entre um produto e outro...
Na fila - enorme - um homem grita grosseiramente, pro mundo inteiro ouvir, que a culpa do mercado estar tão cheio era do "maldito Lula e sua Bolsa Família". "Por causa dele os pobres tão sempre lotando os mercados, comprando e comprando...". Eu penso "Graças a Deus, então... Quem dera existisse Bolsa Família na minha infância, teria sentido menos fome...".
Três rapazes esperam prá passar suas compras, na fila ao lado da minha. Passei pelo meio deles prá buscar sabão líquido, que tinha esquecido de pegar - um deles sentado numa cadeira de rodas, duas pernas amputadas, pouco acima dos joelhos. Na cabeça um boné da moda, brinco na orelha, olhar triste o desse. Bastou os três olharem prá mim prá que me medissem, analisassem e catalogassem: "velha branquela metida a besta"... Olho o carrinho: latas de cerveja, bandejas de carne congelada, pacotes de linguiça. Churrasco. "Tomara que seja divertido, o garoto de olhos tristes está precisando...". Pergunto, à guisa de estabelecer contato e desmanchar a imagem que passo sem querer: "É boa essa marca de linguiça? Nunca comprei..." e dou um sorriso... A única carne que eu como é a de peixe, mas eles não tem como saber... Não conquistei: respondem que não sabem e continuam pensando o que bem entendem da "velha metida"...
No caixa, a invisível moça que passa as mercadorias: cabelo de escova progressiva, unhas pintadas com florzinhas aplicadas. Elogio as unhas, digo que vou falar prás minhas filhas fazerem igual. Imagino que, no lugar dela, eu iria gostar que alguém reparasse nas minhas unhas... Ela sorri, não é mais invisível - e eu também não sou mais...
Volto finalmente prá casa, ajudo a descarregar as compras, olho prá pia - onde descansam 3 pratos, nos quais meus filhos comeram seus pastéis e penso: "Ah, deixa prá depois... Os pratos não vão a lugar nenhum...".
Sento com o "Marildo" no sofá, crochê nas mãos, distraída nos meus pensamentos... "Pai, não me deixa ser a gota que vai transbordar a taça de ninguém, por favor!!! Se puder, me deixa ajudar, um pouquinho que seja, a fazer deste mundo um lugar melhor..." - rezei quando acordei...
Será que consegui? Não sei, depende do ponto de vista...
Eu ri, tive vontade de chorar, pensei muito, observei...
Quase todas as coisas, dependendo de como são observadas, dependendo da luz que incide sobre elas...
podem significar um universo de possibilidades...
Mesmo apenas nossos olhos...